Por Zelia Frangioni
Outubro de 2017. Após 11 horas de voo do Brasil, cheguei ao Aeroporto de Heathrow, Londres. O oficial da imigração —que eu só posso descrever como alto, forte e sério— checou cuidadosamente meu passaporte e perguntou o motivo da minha visita: Bussiness or pleasure? Pensei por um segundo e sorri. “Ambos!” Contei que estava em Londres para ser jurada de uma competição internacional de chocolates. Ele se surpreendeu, mas imediatamente abriu um largo sorriso. “Ah, eu quero esse trabalho! Deve ser a melhor profissão do mundo!” disse, devolvendo meu passaporte. Chocolate sempre teve esse poder de encantar as pessoas no mundo todo.
Eu sempre gostei de chocolate, mas nunca foi minha intenção trabalhar nessa área. Eu era apenas uma chocólatra brasileira que achava que chocolates bons eram feitos somente por belgas e suíços, que chocolate branco não era chocolate, que chocolate amargo deveria ser realmente amargo e que o cacau brasileiro era ruim. Hoje não acredito em nada disso. A paixão pelos chocolates me levou ao hobby de colecionar e provar barras do mundo todo. A curiosidade me levou a pesquisar além do que a mídia tradicional costuma publicar e a estudar a fabricação e a degustação.
Em 2014, comecei a compartilhar num blog o que aprendia. Desde então, venho acompanhando de perto os desenvolvimentos do mercado, principalmente no nicho do chocolate bean to bar artesanal, para o qual desenvolvi um sistema de premiação, que me levou a prestar consultoria para outras competições internacionais similares. O nicho Bean to Bar, mesmo pequeno, tem influenciado o mercado do cacau no mundo todo e em especial no Brasil, cuja história recente tem capítulos de prosperidade, riqueza, crime ambiental, destruição e, agora, superação.
Chocolate é como vinho, para conhecê-lo melhor é preciso degustar muito, conhecer a fruta e seu processo de transformação. Comecei a mergulhar em tudo o que se refere aos sabores, história e ciência do cacau e do chocolate. O que antes era apenas uma guloseima, para mim passou a ser uma experiência sensorial e um novo caminho para ampliar meu conhecimento sobre as relações humanas, política e até economia. Não falo em chocolate como ingrediente, mas chocolate para consumo mesmo.
Cacau no Brazil: O poder nos anos 80
Cacau não cresce em qualquer lugar. Ele precisa de clima quente e úmido. A região ideal fica até 20 graus acima e abaixo da linha do Equador. A principal região produtora de cacau no Brasil nos anos 80 era o sul do estado da Bahia, próximo à cidade de Ilhéus (e ainda é!). O cultivo de cacau começou ali no fim do século XVIII e o país chegou ao posto de segundo maior produtor do mundo nos anos 80, atrás apenas da Costa do Marfim, de acordo com o Food and Agriculture Organization of the United Nations, que registrou a produção brasileira como sendo mais de 392.000 toneladas de cacau em 1989. Consequentemente, essa região era muito próspera e os principais donos de fazendas eram ricos e poderosos.
Cacau no Brasil: Decadência nos anos 90
Toda aquela prosperidade começou a desmoronar em 1990 devido a um fungo levado da Amazônia para a Bahia. O fungo é responsável pela vassoura-de-bruxa, uma praga que destrói os frutos. Investigações policiais concluíram que a introdução da vassoura-de-bruxa foi um ato proposital e criminoso, com a intenção de reduzir o poder e a riqueza dos coronéis do cacau, como eram chamados os ricos donos das maiores fazendas. Quem espalhou o fungo nos cacaueiros da Bahia não imaginou as consequências. A vassoura-de-bruxa se espalhou e aos poucos todas as fazendas foram afetadas. Estima-se que a produção caiu mais da metade nos anos seguintes, causando a perda de emprego de milhares de trabalhadores. Na tentativa de salvar suas lavouras, os donos das fazendas se endividaram e muitos tiveram que abandonar a região, que perdeu sua riqueza e poder.
Poucas famílias da região conseguiram se manter na produção de cacau em alta escala ao longo dos últimos 30 anos. Elas precisaram substituir parte da lavoura de cacau por outros cultivos, bem como também pela criação de gado. Cito aqui a história de João Tavares, porque ele representa um exemplo de persistência e excelência.
Tavares é membro da terceira geração de uma família de produtores de cacau da região de Ilhéus. Assim como eu tenho paixão por estudar chocolate, ele tem paixão por estudar cacau. Nos anos 90, na luta para salvar suas lavouras, ele e os demais produtores de cacau procuraram soluções e, com a ajuda da CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), órgão técnico do governo, fizeram dezenas de testes na tentativa de desenvolver uma técnica que protegesse os frutos ou criasse um híbrido de cacau que pudesse ser ao mesmo tempo produtivo e resistente às doenças.
No entanto, naquela época, o sabor do cacau era um fator de menor importância, pois a imensa maioria dos chocolates levava em suas fórmulas bastante açúcar e aromatizante, que mascaravam qualquer sabor indesejado que viesse dos grãos de cacau. Por isso, o cacau comum é considerado uma commodity, o chamado “cacau bulk”. Assim, os fazendeiros priorizavam variedades altamente produtivas em detrimento das variedades com perfis de sabores cobiçados.
Diferentemente do que normalmente se pensa, as características de sabor do chocolate são desenvolvidas nas fazendas de cacau e não nas fábricas de chocolate. As características genéticas – variedades- importam, mas o esforço humano também, como saber quando colher cada fruto, como e por quanto tempo fazer a fermentação e a secagem dos grãos. Esses processos são trabalhosos, demandam tempo e investimentos e influenciam nas notas de sabor, no amargor, na adstringência e na acidez dos grãos, que depois se refletem no chocolate. O cacau que passa pelo tratamento bem-sucedido de colheita, pós-colheita e transporte e, por isso, recebe um preço premium pelo seu perfil aromárico de qualidade é chamando de “cacau especial” ou “cacau fino”.
Cacau no Brasil: A superação após 2010
Com anos de estudo sobre práticas pós-colheita, Tavares viu o primeiro reconhecimento internacional em 2010, quando ganhou o prêmio de melhor cacau no Salon du Chocolat em Paris. Após anos de uma reputação prejudicada pela vassoura-de-bruxa e o foco na produção de cacau bulk, o cacau brasileiro ser premiado foi algo tão inesperado que algumas pessoas acreditaram ter sido algum engano. No ano seguinte, o cacau de Tavares ganhou novamente, dirimindo assim eventuais dúvidas.
Àquela altura, em vários mercados do mundo, a qualidade do cacau já vinha sendo considerada uma característica importante. Além disso, tem sido crescente o interesse global pelo consumo consciente, então somente sabor e pureza de ingredientes não são mais suficientes para encantar consumidores. Eles (nós!) começaram a exigir das marcas sustentabilidade, rastreabilidade e transparência. Estava começando uma revolução no nicho dos chocolates artesanais, com o surgimento contínuo de novos fabricantes de chocolates bean to bar. Antes disso, os chocolates artesanais, em geral, eram feitos por chocolatiers a partir do derretimento de um chocolate industrializado, os transformando em algo como bombons ou trufas. No conceito bean to bar, a produção é feita a partir dos grãos de cacau, criando chocolates de forma artesanal que tipicamente contém maior conteúdo de cacau, menos açúcar, sem gorduras vegetais e com foco no sabor do cacau, sem nada de aromatizantes. Além disso, existe a constante procura por valorização de todas as pessoas da cadeia produtiva. É totalmente diferente dos chocolates industrializados, que tem o foco em escala, maior prazo de validade e baixo custo, e portanto são feitos com cacau bulk e ingredientes mmais baratos e menos nobres.
Chocolate: A revolução dos chocolates bean to bar artesanais
Para quem faz chocolates bean to bar, a qualidade do cacau é a coisa mais importante, então a procura por cacau fino aumentou. O cacau de Tavares tem sido comprado para uso por importantes produtores de chocolate europeus, como o aclamado chef francês Alain Ducasse.
Durante minhas viagens à Bahia em 2017 e 2019, pude claramente observar avanços na tecnologia de pós-colheita nas fazendas de cacau. Por exemplo, na fazenda Leolinda, de propriedade de Tavares, em julho de 2017, vi seus cochos cilíndricos para fermentação, que são diferentes das tradicionais caixas retangulares, e resultam em melhor sabor. Vi também as suas barcaças ventiladas sobre as quais seu cacau é colocado para secar. Ao contrário das tradicionais barcaças de madeira, as barcaças ventiladas são feitas com telas que permitem um maior contato dos grãos de cacau com o ar, possibilitando a secagem mais uniforme. Além disso, elas possuem cortinas elétricas para proteger das chuvas e regular a passagem de vento. Em maio de 2019, vi as estufas solares usadas para complementar a secagem, tanto na fazenda dele como em outras três. Na estufa solar do Vale Potumuju, fazenda da família Aquino, os grãos de cacau secam sobre gavetas teladas. Esses aperfeiçoamentos mostram que os produtores de cacau brasileiros perceberam a importância de investir na busca por qualidade.
O movimento bean to bar artesanal também está crescendo no Brasil. Em 2014 não se ouvia falar neste tipo de chocolate, em 2017 havia por volta de 30 marcas e em um período de aproximadamente três anos esse número cresceu para mais de 140. Estes produtores de chocolates usam cacau especial brasileiro, tanto da Bahia quanto de outros estados como Pará e Espírito Santo. Vale notar que, comparando com o mercado tradicional de chocolate no Brasil, o bean to bar ainda representa uma parcela extremamente pequena, até difícil de mensurar com precisão. Essa participação só vai crescer se houver esforço conjunto dos agentes do mercado na educação do consumidor.
Em julho de 2017, eu lancei a primeira edição do Prêmio Bean to Bar Brasil, com os objetivos de divulgar os chocolates bean to bar e de promover a melhoria desses produtos. Ao contrário das outras competições de chocolates, aqui os próprios produtores de chocolate fazem parte do júri oficial, juntamente com jurados internacionais. Os chocolates são produzidos em moldes idênticos para evitar identificação pelos jurados. A avaliação às cegas coleta tanto as notas que são usadas para determinar os vencedores, quanto os feedbacks por escrito que são enviados de volta para cada participante. Esses feedbacks têm provado ser uma ferramenta importante para a melhoria das fórmulas dos chocolates, por exemplo, melhorando características sensoriais e reduzindo defeitos.
Além do júri oficial que decide as premiações Ouro, Prata e Bronze, um júri de consumidores decide a premiação Escolha do Público. Assim, os produtores de chocolate recebem feedbacks tanto dos profissionais quanto consumidores.
Analisando os resultados das competições, vemos como o investimento em tecnologia na fazenda de cacau tem feito a diferença no resultado dos chocolates. Um exemplo é a Cacau do Céu, uma marca de chocolates que recebeu duas vezes o bronze no Prêmio Bean to Bar Brasil. Seu chocolate é feito com o cacau da Fazenda Leolinda, de Tavares. A Fazenda Camboa, também da Bahia, é outra referência importante. Com seu cacau foram feitos os chocolates da Mission Chocolate (dois Ouros e um Escolha do Público) e da Casa Lasevícius (um bronze). O cacau desta fazenda também é usado em barras da marca norte-americana Dick Taylor.
Num país produtor de cacau é de se esperar também a verticalização do processo de fabricação dos chocolates. Os produtores de cacau já perceberam que podem lucrar ainda mais com seu cacau fazendo o próprio chocolate. Não é fácil, é trabalho dobrado, mas é assim que surgem as marcas tree to bar, da árvore à barra, feitas no mesmo conceito do bean to bar. Marcas tree to bar, como Amma, Baianí, Mendoá, Mestiço e Var, já foram premiadas nas competições internacionais.
O desenvolvimento aparece também na distribuição. Aos poucos, temos visto no Brasil iniciativas de empreendedorismo espalhando o conceito bean to bar para o comércio. No começo, os chocolates bean to bar e tree to bar eram vendidos apenas em feiras de produtos naturais e em pequenas lojas de alimentos. Depois vieram as lojas multimarcas especializadas neste tipo de chocolate. São lojas que não comercializam chocolates industrializados e se empenham em divulgar o movimento bean to bar.
Num modelo de negócios mais ambicioso do ponto de vista de impacto, veio a Dengo, uma marca que produz chocolates bean to bar e os distribui em lojas próprias. Até agora, eles cresceram rapidamente, abrindo 18 lojas exclusivas no país em três anos. São lojas localizadas dentro de alguns dos melhores shoppings centers em grandes cidades de 4 estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Paraná). São aconchegantes e bem decoradas, e os atendentes são treinados para educar os consumidores sobre esse novo tipo de produto. Os chocolates da Dengo são feitos com cacau de pequenos produtores da Bahia e são incrementados com frutas tropicais e castanhas brasileiras, tanto no formato de tabletes e barras gigantes para a compra a granel (pensando num menor consumo de embalagens), quanto de bombons e pepitas – que são grãos de cacau inteiros cobertos com chocolate, uma inovação que encanta os consumidores. Além da maior visibilidade deste novo tipo de chocolate para o mercado, o impacto da Dengo é também ambiental e social. Os preços pagos para os produtores de cacau são até 150% mais altos que os do cacau bulk e são baseados na qualidade do cacau, determinada por análises físico-químicas e sensoriais realizados pelo parceiro CIC (Centro de Inovação do Cacau).
Incentivos assim estão levando o cacau brasileiro para um próximo patamar de excelência, o que consequentemente leva à criação de chocolates maravilhosos, com diversidade de notas sensoriais, sem a necessidade de aromatizantes. É todo um mundo novo de experiências de sabores que se abre para nós, amantes do chocolate, com grande potencial para uma mudança social duradoura. É um imenso prazer ver essa revolução acontecer.
Zelia Frangioni, engenheira brasileira, autora do blog Chocólatras Online, criadora e diretora do Prêmio Bean to Bar Brasil, consultora e produtora de conteúdo sobre chocolates.